O Auto da Tentação

I acto

Narrador:

Uma bela dama que divagava

pela escura madrugada,

questionava e indagava

que o amor não era nada

Vivia sobre tormentos

da alma, e lamentos

procurava nas emoções

as mais puras sensações

Casada era, e bem casada

funesta enamorada

mas o amor do matrimónio

é tão só respeito homónimo

e vendo-se ferver de amor

caminhava com puro alvor

mas no entanto desejosa

de uma vida primorosa

primária e sensorial

não de melancolia fatal

e caminhava pensativa

triste e depressiva

quando no horizonte avistou

um vulto que se aproximou

caminhava como um galante

e a dama, que então perante

majestoso ser que a olhava

naquele luar que os iluminava

Observou-a e encurtou

a distância que não durou

Então os vultos se aproximaram

intrigaram e indagaram

quem seria o outro ser

que naquele luar podiam ver,

e então ele disse-lhe que a poesia

era o enigma que ela queria.


Dama:

Quem sois vós caro poeta

que me atenta a diva meta?

Que me seduz, me aponta a seta

me trespassa, ferida aberta!


Poeta:

Sei que vos desejo e vos venero

Por vós a cada dia espero

Incendeio, tal como Nero

O grandioso e o austero


Dama:

Que me dizeis a meu marido,

não considerais tal perigo?


Poeta:

Considero apenas o coração ferido

e desamores de um amor querido

Tal amor, que em tempos ido,

me feriu, divinal castigo


Dama:

Não me atenteis na madrugada

Pois padeço desesperada

De amor, de ser amada

De exaltações pela alvorada

E vós sois quem me desvirtua

Quem me atenta, me quer ver nua

Difamada na atroz rua

Julgais que sou assim sua?


Poeta:

Sou apenas sangue em carne crua

por não vos ter, minha dócil lua

sou aquele que a vós murmura

que sofre por paixão dura


Dama:

Quem julgais que sois caro poeta,

que me desvirtua a pueril meta?


Poeta:

Sou o poeta das sensações

venero outros, como Camões

mas a vós, cara Donzela

minha amada, cara Mirela

desejo-vos ardentemente

Deus me ouça, pois Nele sou crente

Que é puro e salutar o meu amor

E que eu o seja, se assim for

mentira, o que vos vou dizer,

punido nos infernos que a ferver

punem as calúnias dos galantes

que apenas mentem e ferem amantes


Dama:

Mas atentai a meu marido

Não vedes vós o grande perigo?

As vossas palavras são tentação

São a maçã, mas vede Adão

que expulso foi daquele jardim

e percorreu estradas sem fim

Pelo além do fim do mundo

Prevaricou, castigo profundo


Poeta:

Mas se me cabe tal sofrimento

só de vos ver, contentamento

Atravessarei a cruel gosto

e veremos o sol posto

A vosso lado, a madrugada

o renascer da alvorada

neste madrigal que vos ofereço

Pago caro, é alto o preço

de um atentado a tal pureza

de uma donzela, pura beleza

Reafirmo por vós, o meu amor

É o antídoto de uma mágoa indolor


Dama:

Mas observai a meu marido

Não considerais tal perigo?

Temo-o a ele pelas suas palavras

É um homem de regras regradas

Pune com a morte o adultério

O casamento é um divinal mistério

Consagrado pelos rituais

Por Deus, pelo Papa, entre outros tais

Recuso-me a ouvir-vos Senhor

Pois adornais-me com amor

que temo e devo recusar

pois sou fiel a ao amar

Um amor de carne, amor ardente

Peco e perco o amor crente

no divino que outrora aceitei

E apenas com o meu Senhor me deitei


Poeta:

Pois se ao amar-vos, recebo a morte

de bom grado, aceito tal sorte

Um vosso beijo é o apogeu

Uma carícia que se perdeu

nos sonhos em que a vi e sonhei

Sonho acordado e já não sei

Se prefiro morrer a sonhar

Ou abraçar-vos, sob este luar


Dama:

Rogo-vos, não me atenteis

Vede, Senhor meu pai

Homem valoroso e regrado

Probo, recto e honrado

Se soubesse da tentação

de sua filha, a perdição

Lavaria a honra no momento

Trespassá-lo-ia sem constrangimento

E minha mãe, como a respeito

Desvirtuá-la com este feito

Seria atroz e vergonhosa

Esta sina, e a alma penosa.


Poeta:

Atento apenas que vos amo

Se não sou sagrado, sou profano

Se não sou imenso, sou pequeno

Se não sou divino, sou terreno

Sou sempre aquele que vos venera

que vê em vós a Primavera

Que anseia pelo vosso toque

que rejeita o vosso dote

Atento apenas que vos desejo

E mal o menos, não o prevejo

Pois se amar-vos, implica a morte

Não recuso, tal feliz sorte

Pois contemplar-vos e assim viver

É reviver e resplandecer

É assim contemplar Afrodite

E peço-vos que comigo grite

Que bradeis comigo este fervor

De sentirmos grandioso amor


Dama:

Vossos lábios são a tentação

O pecado da perdição

Quando faleis, sinto o tremor

Provocado por um temor

Pois considero este Amor

Uma ferida aberta, mero tumor

Que deve ter uma simples cura

A redenção é para quem jura,

A fidelidade é o respeito

Puro amor, amor perfeito

Amo apenas o que me sustém

Que me ama, agora e além

Que me jurou amar em grande altar

Não com um madrigal ao luar

Devo pois refutar o vosso amor

(E que tanto me custa esta atroz dor)


Poeta:

Refutai então a felicidade

e morrereis com a saudade


Dama:

Morrerei apenas com a consciência

Com Deus e Sua veemência


Poeta:

Então aproveitai este momento

Porque parto, chegou meu tempo


Dama:

Mas...onde ides caro Poeta?

Ides já? Não tenhais pressa!


Poeta:

Irei para não mais voltar

Para outras paragens, outro lugar


Dama:

Tende calma, caro Senhor

Acalmai apressado andor.


Poeta:

O meu destino não está aqui

Perto de quem, não me sorri


Dama:

Não me atenteis! Ao vos ferirdes

Os nossos laços são fecundas vides

das uvas da tentação

de um vinho de perdição

Do Amor que quero ter

Em quente inferno irei ferver


Poeta:

Fervei em mim, cara Donzela,

cara dama, cara Mirela

Ferveremos os dois de amor

Eu a espiga, vós a flor

Dois laços que se enrolam

Dois corpos que aqui rebolam

Do infernal amor-altar

Pois vos desejo sob este luar

Pois se vos amo, a verdade digo

Anseio vosso divinal umbigo

Do suor que nele percorre

E a seiva que dele escorre

São o suco de um divinal

festim a Vénus: O Ritual.


II acto

Dama:

Venerai o meu umbigo

e encarai como inimigo

Bom Senhor, meu marido

que em sua honra ferido

encontrá-lo-á por este mundo

movido de ódio profundo

E matará sem pundonor

constrangimento ou mero amor

por uma adúltera que aqui peca

que se desvirtua com galante poeta

Temos ambos o destino traçado


Poeta:

Vivei o presente, depois o passado!

Porventura podemos fugir

P'ro fim do mundo e sorrir

Pela ausência de um ditador

que vos retém ansioso amor

Um déspota que vos encara

como posse, posse cara

Uma posse que vos entristece

E vosso marido, não vos merece!


Dama:

Quem sois vós caro Poeta,

que me atenta a diva meta,

para me falardes de tristeza

sem referirdes a pureza?

Se sou triste, mas sou pura

pois a alegria não perdura

E alegre nem sei se sou

nem sequer sei se me alegrou

o poema, que outrora li

e nesse mesmo me perdi

de amores e não de alegria

de tristeza e melancolia.

Pois amar e respeitar

Perene amor que em grande altar

Foi jurado e engrandecido

Para sempre e aqui perdido

Numa vulgar noite de luar

Com quem me jura para sempr'amar!


Poeta:

Se não juro, pois então prometo

Que eternamente me comprometo


Dama:

Não prometeis o impossível,

bem sabeis que não é crível

o que dizeis de leve ânimo

pois o pretérito e o contemporâneo

são ambos um, nesta doutrina

e não evoqueis minha crua sina

Pois se crua é, eu a mereço

pesada cruz, é alto o preço

o amor que me ofereceis

é a lascívia de ímpios reis

que outrora prevaricaram

esses déspotas da carne que amaram.


Poeta:

Falais de carne e de luxúria

Esqueceis vós vossa penúria?


Dama:

A penúria é o caminho,

O sofrimento é o divino

O Amor regrado, é salutar

E o amor ardente é descurar

O amor divino que é grandioso

que renega o poeta ocioso

que evoca um amor frágil

ardiloso e sempre ágil

que atenta os corações

que evoca as emoções

impróprias e funestas

em luxuriantes festas

onde por pretéritos imperfeitos

se escolhem como eleitos

Baco, Vénus e Afrodite

e esses ímpios da mesma elite


Poeta:

Não sei mais que vos dizer

Se não, querer é poder!

Mas como não quereis a alegria

A felicidade e a folia

O Amor, terno e intenso

Apenas carícias: é o que penso

Ao contemplar divinal rosto

A vossa ausência, é o sol posto

E o Divino não é penúria

deixar de amar é sim injúria

Um atentado às emoções

Pois somos dotados de sensações

Será ímpio desfrutá-las?

Com Amor e consagrá-las

no altar que proclamais

Amo-vos e muito mais!


Dama:

Não faleis, que vos odeio

Sois fraco, rude e feio

Não faleis, que sois impróprio

Sois a droga, o álcool, o ópio

Não faleis, que a vossa voz

é o caudal do rio na foz

Que me escorre nos sentidos

São ardentes estes perigos

Não faleis, que vos recuso

O meu Amor é tão difuso

Pois se Amar a Deus

é amar a dois e aos Seus

intocáveis mandamentos

Amar a três é só tormentos

E se o meu marido me jurou amar

em austero grandioso altar

e se vós jurais perene amor

e me afastais esta dor

Perco a razão ao que fazer

Não me cabe a mim escolher!


Poeta:

Caberá então a quem,

Ao divino e ao além?


Dama:

Ao fado da minha vida,

pois se aqui estou perdida,

carrego a mágoa do sofrimento

desta sina e do lamento

Sois vós, a felicidade,

e não querendo, morrer com a saudade

me entrego, qual freira

que se entrega, feita rameira.


Narrador:

Amaram-se nesse luar

As peles quentes ao abraçar

irradiaram o universo

de carícias e amor perverso

Amaram-se, sem cessar

Um amor ardente, que naquele luar

Foi eterno e para sempre

Foi sucumbirem-se numa só mente

Foi alcançar o equilíbrio

e renegar o atroz martírio

Foi juntar o sangue, e a paixão

Fazer de dois, um só coração

Foi o plural, ser singular

Uma entidade naquele luar

Una em quatro braços

que se perderam, em ternos abraços

Foram os ventres que se uniram

Requerimentos que se pediram

Ternuras que se se trocaram

São estes dois, que se amaram

E louvaram a Deus, pois são Dois num só

E no fim da vida, serão apenas pó

Mas um pó uno, da mesma terra

É ardente amor que aqui encerra

Um pecado de traição

Um pecado de perdição

Entre uma adúltera e um poeta

que lhe atentou a diva meta

de um fecundo amor, que no fim foi três

de um rebento que assim se fez

Um homem que é pecador

pois provém de ardente amor.


JFOLPF

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